
Maria Cecília Delmanto, de quarenta e seis anos, filha do ex-deputado Dante Delmanto e irmã de advogados famosos, escritores de livros sobre direito penal, e Jorge Toufic Bouchabki, advogado de quarenta e cinco anos, eram um casal de classe alta da cidade de São Paulo. Moravam em uma casa na Rua Cuba, que fica no bairro Jardim América, de luxo, com seus três filhos: Jorge, de dezoito anos, Marcelo, de quatorze, e Graziela, com dez anos.
Graziela tinha uma condição cardíaca que deixava seus pais e irmãos bem alarmados com a possibilidade de que ela passasse mal e precisasse de ajuda a qualquer hora do dia. Por isso, Maria Cecília e Jorge Toufic nunca dormiam com a porta trancada pois, dessa forma, se a criança sentisse um mal estar durante a madrugada, poderia buscar socorro sem precisar bater na porta.
Ela era o xodó da família, em especial de seu irmão mais velho, que, naquela véspera de Natal, tinha uma notícia incrível para dar à família: ele tinha passado no vestibular. A novidade acalmaria o coração da mãe, Maria Cecília, que chegou a ter algumas discussões com ele por conta do namoro com Flávia, que, na época, tinha dezesseis anos.
Muito se especula sobre o que levou Maria Cecília a implicar com o relacionamento do filho mais velho. A família da namorada não era, digamos, tão bem de vida quanto a de Jorge, e muitas fontes falam que a mulher tinha essa desconfiança. Estamos falando de uma época em que o GOLPE DA BARRIGA era um conceito muito tratado quando a mulher da relação tinha condições financeiras menos favoráveis, e não dá pra negar que, em famílias ricas, esse era um grande tabu.
Mas é quase um consenso entre as fontes que a grande questão era a educação liberal que Flávia tinha e que permitia, por exemplo, que Jorge dormisse na casa dela sem nenhum problema. Se hoje esse tipo de interação entre adolescentes ainda é um assunto delicado em muitas famílias, imagina há trinta anos atrás! E, como Flávia era menor de idade, Maria Cecília podia nutrir o medo de uma gravidez não-planejada que potencialmente mudaria a vida da adolescente e também de seu filho mais velho.
Em algumas fontes, outro motivo relatado para que ela não concordasse cem por cento com o namoro era o distanciamento que ocorreu entre Jorge e seus amigos após o início do namoro com Flávia. Maria Cecília achava que seu filho era jovem, tinha boas amizades e devia viver a vida de forma mais leve, sem se comprometer tão cedo com relações afetivas mais sérias.
Outra possibilidade é que a moça fosse vista pelos Delmanto Bouchabki como uma distração em um ano importante da vida acadêmica de Jorge, já que ele cursava o pré-vestibular para tentar ingressar em uma prestigiada universidade de direito. Talvez por causa dessa resistência da mãe, Jorge começou a dar seu jeito alternativo, digamos assim, de estar com a namorada. E, naquela véspera de Natal, foi assim.
No dia vinte e três de dezembro, a família toda se juntou para jantar e comentar o dia. Em seguida, Jorge Toufic e seus dois filhos foram à casa de um amigo, enquanto Maria Cecilia, Graziela e as funcionárias Maria e Olinda, que trabalhavam e dormiam na casa da Rua Cuba, ficaram embalando os presentes de Natal que ainda precisavam de embrulho.
Foi em algum momento dessa noite que Jorge contou para todos que passou no vestibular, algo pelo qual vinha sendo cobrado o ano inteiro, enquanto fazia o cursinho. Ele disse que foi aceito em uma faculdade de direito, que era basicamente o sonho da família toda. Como profissional da área, carregaria os sobrenomes fortes e já consolidados na advocacia tanto por parte de mãe quanto de pai. Então, foi um presente de natal antecipado a eles essa conquista do filho.
Logo cedo, na manhã do dia vinte e quatro de dezembro, Jorge deixa um bilhete e sai cedo de casa, sem causar tumulto. Ele vai para a casa de Flávia, a namorada, que não entende a razão pela qual ele está ali naquela hora do dia, e recebe a justificativa de que Jorge não estava conseguindo dormir em casa. Segundo algumas fontes, em determinado momento, ele pede para que ela se mantenha acordada até que ele dormisse, já que tinha tido pesadelos e não queria viver a sensação de estar acordado sozinho.
Pouco tempo depois, por volta das oito e meia, nove da manhã, ele liga pra casa e pergunta a uma das funcionárias que atende à ligação: “E AÍ? TÁ TUDO BEM?”
Certamente esperando que a mulher diga “Oi, Jorge, tá sim, tá tudo certo”, talvez perguntando “você vai voltar pra casa agora cedo? Vai almoçar aqui?” e todas essas coisas que geralmente acontecem quando a gente pergunta se tá tudo bem e a outra pessoa responde que tá.
Só que Jorge foi surpreendido pela empregada, porque ela disse que NÃO, não tava tudo bem – e, mesmo sem ela saber onde ele estava ou porquê, talvez ele precisasse ir urgentemente pra casa.
A empregada da casa dos Delmanto Buchabki disse a Jorge que seus pais ainda não tinham acordado, o que não era normal, já que eles costumavam acordar lá pelas sete, e o despertador, programado para a sete e meia só para garantir, tinha tocado nessa hora e não parou mais.
Naquela época o despertador tocava até alguém desligar manualmente, o que não aconteceu. Pra piorar, eles estavam com a porta do quarto TRANCADA, o que era absolutamente incomum.
Eles nunca trancaram a porta, por causa da Graziela… A empregada disse a Jorge que estava preocupada por seus pais terem passado mal.
Nesse ponto as informações que a gente encontrou para o roteiro são meio difusas. Em alguns lugares é contado que Jorge pediu à empregada para que ela pegasse uma escada e fosse olhar pela janela da varanda, para ver se os pais estavam lá, e como estavam, e em outros é dito que a mulher contou para Jorge que conseguiu ver pela janela que seus pais estavam na cama, debaixo das cobertas, mas que não atendiam às batidas, nem na porta e nem na janela.
Alarmado, Jorge foi direto para casa e houve uma discussão sobre se eles deveriam arrombar a porta ou não. Como era o mais velho, e seus irmãos eram duas crianças, Jorge disse que eles NÃO arrombariam a porta, porque poderia ter um ladrão lá dentro.
Já era pela hora do almoço quando Jorge saiu pelo bairro para buscar ajuda e encontrou uma viatura da polícia. Contou o ocorrido e disse que estava preocupado, pedindo para que os policiais fossem até a casa para dar um suporte.
Eles chegam na casa, batem na porta, na janela, nada. Os policiais arrombam a porta trancada e conferem: não tem ladrão nenhum. Encontram Maria Cecília e Jorge Toufic Bouchabki deitados, debaixo da coberta, como se estivessem dormindo. Mas a realidade é outra: a polícia constata que eles estão mortos. Maria Cecília, com dois tiros, e Jorge Toufic, com um.
Aí você pode pensar: sorte que Jorge encontrou uma viatura na rua, pois nem foi preciso ligar para a polícia para relatar a tragédia. As coisas foram feitas de forma rápida e a investigação correu bem melhor do que se a polícia ainda tivesse que ser acionada e a cena do crime fosse contaminada, certo?
ERRADO. Muito errado.
O que transforma o Crime da Rua Cuba em um grande MISTÉRIO da Rua Cuba é, justamente, a investigação atrapalhada e enviesada de uma corporação que, naquela época, queria mais era estar nas manchetes e alimentar a opinião pública com sensacionalismo barato do que, de fato, solucionar o crime.
Ter policiais em casa descobrindo os corpos de Maria Cecilia e Jorge Toufic não só não ajudou ninguém como, também, atrapalhou muito. As crianças ficaram visivelmente abaladas com a notícia, assim como Jorge e a empregada, mas eles não tiveram tempo para processar o choque. Como os maiores de idade da residência, começaram a colaborar com as investigações ali mesmo.
Naquela véspera de natal choveu muito, com raios e trovões, e talvez por isso ninguém escutou os tiros que tiraram a vida de Maria Cecília e Jorge Toufic. Mas isso não explicaria, por exemplo, como a cadela da família, uma dálmata chamada Diana, não latiu ao ouvir os estampidos.
Um vizinho, que tinha um viveiro de pássaros, disse que seus animais se assustaram em algum momento durante a madrugada, e isso foi levado em consideração pela perícia para determinar, mais ou menos, a que horas os tiros foram dados.
A casa também não tinha sinais de arrombamento, exceto pela porta do quarto, que a polícia abriu à força, retirando as dobradiças. Além de estar tudo organizado, o que não acontece quando alguém invade uma casa para roubar e sai procurando coisas e jogando coisas pelos cantos, a casa tinha uma espécie de cerca viva nos muros, que tinham muitas plantas por todo o perímetro, e elas não estavam danificadas, o que indicava que ninguém pulou o muro, também.
O modo como os corpos estavam arrumados, deitados como se estivessem dormindo, também chamou a atenção. Isso demonstrava que o assassino não só teve tempo de matar e arrumar os corpos pós-morte como, também, que tinha frieza suficiente para fazer isso. Um crime passional, talvez? De alguém emocionalmente envolvido com aquelas duas pessoas?
Logo, a primeira linha de investigação dizia que provavelmente foi alguém de dentro da casa, que tinha acesso facilitado às chaves e poderia transitar sem causar tumulto.
Enquanto a perícia e os investigadores faziam o levantamento das informações ainda na cena do crime, várias pessoas entraram e saíram da casa dos Delmanto Bouchabki na Rua Cuba. É possível que cerca de QUARENTA PESSOAS tenham entrado e saído do quarto de Maria Cecilia e Jorge Toufic, ou seja, da CENA DO CRIME, naquele dia.
Policiais, peritos, mas também amigos e familiares estiveram por lá à procura de respostas ou apenas para viver o luto mais perto das vítimas. A imprensa ficou sabendo dessa pauta quente, e de toda a comoção da tragédia em uma família de sobrenome importante, e logo correu para lá, trazendo ainda mais gente curiosa até o local.
É importante a gente lembrar que, principalmente na parte de Maria Cecilia Delmanto, estamos falando de uma família de juristas com especialidade em direito penal. Por isso, muitos entraram ali talvez com a intenção de conduzir as próprias investigações paralelas, o que, é claro, jamais daria certo. Imagina a contaminação da cena de crime com esse vai-e-vem…
Demorou pouco tempo para que o país inteiro soubesse que, naquela noite de natal, uma família tradicional de São Paulo não faria a ceia como o esperado, mas teria que organizar um funeral completo para dois de seus membros e, ainda, buscá-los no Instituto Médico Legal da capital paulista.
O Brasil acompanhou com interesse o desenrolar do caso que teve como resultado do primeiro laudo o seguinte: Maria Cecília morreu com dois tiros à queima roupa e tinha um ferimento na cabeça, e Jorge Toufic morreu com um tiro no rosto e tinha marcas de um tiro de raspão perto da orelha.
Dois dias depois, a perícia voltou ao local do crime para coletar mais provas, mas o que encontraram foi frustrante: o carpete do quarto não estava mais lá e os pijamas que as vítimas usavam na noite do crime foram lavados. Isso mesmo! As roupas das vítimas foram parar na máquina de lavar.
Aí você pergunta: eles não tinham que ter pegado essas evidências antes? Ou nem deixado as roupas voltarem para a família antes da conclusão da investigação? Pois é, eu também acho…
Um teste acústico foi realizado para saber se os disparos seriam ou não ouvidos pelas outras pessoas da casa. A conclusão foi de que seriam, pois os tiros ecoaram não apenas na casa, mas em boa parte da rua, com vizinhos saindo à porta para ver o que estava acontecendo.
Contudo, é essencial lembrar que esse teste foi feito durante o dia, com condições normais de tempo, sem chuva, sem trovão, e com as pessoas em alerta, pois elas tinham o conhecimento do que iria acontecer em seguida, pelo menos dentro da casa. Então, durante o teste, o que você espera é JUSTAMENTE ouvir o barulho de tiro.
Quando ele é dado sem aviso, é mais difícil diferenciá-lo de trovões, por exemplo, e principalmente se você nunca tiver ouvido um barulho de tiro.
Com menos provas do que mais provas, como era o esperado, um corpo de legistas da Unicamp traçou uma possível linha do tempo dos acontecimentos: segundo eles, entre duas horas e cinco horas da manhã de vinte e quatro de dezembro, o assassino entra no quarto do casal e se aproxima deles. Maria Cecília e Jorge Toufic já estão dormindo. Ele atira em Jorge Toufic, atingindo o patriarca da família de raspão. Assustado, ele tenta se levantar, mas recebe um tiro à queima-roupa na altura do nariz e morre imediatamente.
Na confusão, Maria Cecília acorda, também assustada. Tenta se levantar, mas, contida pelo assassino, que lhe dá um empurrão, ela bate a cabeça na quina da cômoda, perto da cama. Esse é o ferimento na cabeça. Ela não consegue nem se orientar novamente antes de levar dois tiros.
Cerca de DUAS horas depois da morte, os corpos são ajeitados na cama, como se estivessem dormindo. A polícia civil é acionada dez horas depois do assassinato para registrar a ocorrência e iniciar a perícia.
A maioria de nós não faz nem ideia, mas algumas fontes, inclusive de quem já era adolescente nessa época, relatam que o caso causou um burburinho enorme em toda a cidade de São Paulo e também no país.
Afinal, como alguém entra em uma casa onde moram mais cinco pessoas, sendo um jovem adulto, um adolescente, uma criança e duas funcionárias adultas, e ninguém escuta nada? Inclusive Diana, a dálmata, que poderia facilmente se alarmar por qualquer coisa, porque é isso que os cachorros fazem…
… fora que, se a pessoa ficou na casa por todo esse tempo, de matar a arrumar os corpos, e saiu tranquilamente… é de dar arrepios, não? Como no caso dos estudantes de Idaho, que contamos aqui no canal: imagine você estar na mesma casa onde um assassino provoca uma tragédia, com possibilidade de ser a próxima vítima?
A imprensa, claro, mergulhou de cabeça nas narrativas que exploravam essa e outras possibilidades, e a combinação entre o sobrenome importante, a localização luxuosa e familiares criminalistas tentando dar contorno aos fatos acabou fazendo o maior sucesso.
Como em todo crime, esse também tinha uma lista de suspeitos.
Em um primeiro momento, disseram que Jorge Toufic teria dado dois tiros na mulher, Maria Cecilia, e se matado em seguida. Se fosse o caso, apesar de triste, seria algo comum, pois coisas assim infelizmente acontecem. Mas a hipótese não se sustentava, porque, para isso, Jorge Toufic teria que matar a esposa, se matar, esconder a arma e se cobrir ao lado dela.
Meio difícil para um morto fazer tudo isso, não?
Fora que, e essa é uma nota pessoal minha, para um casal que ficava esperando que a filha pudesse entrar no quarto caso passasse mal, Jorge teria que ser muito cruel para tirar a vida dele e da esposa dentro da própria casa, já que trancar a porta não ia adiantar nada, e seus filhos veriam aquela cena mais cedo ou mais tarde.
Uma curiosidade é que, nas pesquisas, a gente ainda vê relatos de que, na autópsia, foi descoberto que Maria Cecília tinha apenas um tiro e Jorge Toufic é quem tinha dois. Nesse caso, o homem teria que ser muito ninja para se matar com DOIS tiros, esconder a arma, se deitar e se cobrir.
Mesmo assim, essa tese foi amplamente divulgada. A família de Maria Cecília deu depoimentos dizendo que as brigas eram constantes e que Jorge Toufic poderia, sim, guardar algum ressentimento, já que ele era acusado pelos Delmanto de se aproveitar deste sobrenome para criar a própria referência no meio jurídico de São Paulo.
Se, nos jornais, a opinião pública acreditava na hipótese do homicídio-suicídio, a polícia não podia fazer o mesmo, já que não tinha a menor chance de isso ter acontecido. Onde estaria a arma do crime? O revólver, de calibre trinta e dois, jamais foi encontrado.
Era preciso investigar mais. Talvez o assassino ou assassina poderia ser mesmo alguém que conhecesse a família e cuja movimentação na casa não causasse suspeitas. Mas… quem? As duas crianças foram imediatamente descartadas como suspeitas porque, pelo óbvio, não fariam aquilo sem, pelo menos, causar uma enorme bagunça.
As empregadas tinham um álibi. Ambas estavam no quarto dos fundos, onde dormiam, e nenhuma evidência visível as colocava na cena. Aliás, o primeiro depoimento das funcionárias desmentia esse negócio de o casal viver brigando. Uma delas disse que não acreditava ser ninguém da família, porque os Delmanto Bouchabki eram unidos e amorosos uns com os outros.
Um outro suspeito divulgado pela polícia à imprensa era um homem que invadiu a casa da Rua Cuba no ano anterior, para assaltar, mas foi preso em flagrante, e teria executado o casal como vingança. Mas ele também tinha um álibi, além de não morar mais na cidade de São Paulo.
Havia também um conflito entre Maria Cecília e Jorge Toufic e os donos da construtora de um imóvel que o casal comprou no litoral de São Paulo. É dito que eles reclamavam muito da demora da obra e as picuinhas acabaram resultando em várias ameaças de morte pelo pessoal da construtora. Acabou que eles também foram descartados, pois também tinham álibis válidos.
Sabe quem não tinha um álibi sólido e que se encaixava na narrativa que estava sendo criada em torno do crime da Rua Cuba? Jorge, o filho mais velho de Maria Cecília e Jorge Toufic. Ele não só tinha apenas “meio álibi”, digamos assim, porque passou a noite em casa, mas foi logo de manhã dormir na casa de Flávia, como também tinha o que a polícia considerava possíveis motivos para um assassinato.
O próprio disse, em entrevista quase trinta anos depois do ocorrido, à Folha de São Paulo, que, abre aspas, nunca foi tratado como suspeito, fecha aspas. E a razão era clara: ele não foi tratado como suspeito porque, desde o início, a mídia já o retratou como o CULPADO.
Nesses tempos de internet a gente já cansou de ver alguma celebridade ou subcelebridade que se destaca de repente ser cancelada por coisas que disse ou fez no passado. Na década de oitenta, cabia à imprensa fazer essa pesquisa e contar ao público o que ela quisesse sobre qualquer pessoa, a partir de seu próprio ponto de vista.
E foi assim, entrevistando os investigadores, os vizinhos, membros da família Delmanto e da família Bouchabki, além de amigos das vítimas, que a imprensa decidiu, no apagar das luzes do ano de mil novecentos e oitenta e oito, que Jorge matou seus pais.
Essa conclusão foi construída a partir da investigação da polícia, mas vale lembrar que todo o espetáculo criado em torno da morte do casal destruiu várias evidências que poderiam ter levado a uma conclusão. Quarenta pessoas no quarto, gente. E isso só pra começar.
Para se ter uma ideia, durante os anos que se seguiram, muitas pessoas disseram ter certeza de que foi Jorge quem tirou a vida dos pais porque em seu depoimento à polícia ele disse que passou a noite jogando videogame com seu irmão Marcelo e, depois que o mais novo foi para a cama, ele viu um filme na televisão, mais especificamente O Gordo e o Magro, e a emissora que ele citou disse que não exibiu esse filme.
Existe uma boa chance de ele ter apenas se confundido, porque uma pessoa culpada não seria tão precisa com uma mentira que podia ser facilmente checada. Mas, para muita gente, foi esse o detalhe que entregou o assassino.
As razões mais cotadas para que Jorge tenha matado os pais, por conta própria, eram seu namoro e sua vida estudantil. Uma linha de investigação apontava para uma discussão entre Jorge e sua mãe sobre o namoro com Flávia e que, certo momento, ele perdeu o controle, atirou em Maria Cecília e, flagrado pelo pai, atirou nele também.
Outra tese que não se sustentou, porque Jorge só seria flagrado pelo pai se já estivesse dormindo, nessa hora, ou seja, se já estivesse ali na cama. E, segundo os legistas da Unicamp, Jorge Toufic, o pai, morreu primeiro.
Pra deixá-lo ainda mais suspeito, a lista dos aprovados no vestibular saiu no dia vinte e quatro de dezembro e o nome de Jorge NÃO ESTAVA LÁ. Essa mentira também foi combustível para que a imprensa fizesse dele quase que o assassino confesso, embora Jorge sempre tenha afirmado que era inocente, e que daria quantos depoimentos fossem necessários, porque ele não tinha matado seus pais.
Outra informação que chacoalhou a vida de Jorge, e o que provavelmente fez com que ele imediatamente fosse representado por um dos advogados da família de sua mãe, foi a de que, na noite do dia vinte e três ele ligou para a namorada Flávia, mais ou menos à meia-noite, e disse que não dormiria na casa dela, como o combinado, porque uma visita inesperada tinha chegado na casa deles.
Aí, ela se surpreende com ele chegando tão cedo, às sete da manhã, e uma discussão ocorre entre os dois. Ele fica impaciente e resolve ir embora. A ligação que ele faz para casa pode ter sido de dentro da casa da Flávia ou de um orelhão próximo à residência dela.
Se, por um lado, ele não era o culpado, e não queria se aproximar dessas suspeitas, por outro ele tinha um comportamento que chamava a atenção de forma negativa. Dias após a morte dos pais ele foi visto passeando no shopping e nadando em um clube, como se não estivesse vivendo o luto da forma que as pessoas esperam. A forma como ele se comportou na missa de sétimo dia, com aparente frieza, e o fato de ele ter pulado o carnaval de mil novecentos e oitenta e nove com naturalidade foram acontecimentos que levantaram suspeitas na população, já que a mídia estava noticiando cada passo de Jorge, sedenta por um furo de reportagem.
Fato é que, mesmo com todo o estardalhaço causado pela imprensa e a investigação por vezes enviesada da polícia, que praticamente deixou de lado todas as linhas de investigação em potencial para focar apenas em incriminar Jorge, o filho mais velho, nada se concretizou.
O Ministério Público até ofereceu a denúncia, mas ela não foi aceita por falta de provas. Assim, o crime da Rua Cuba nunca foi a julgamento, nunca incriminou ninguém e nenhuma tentativa de reabrir o caso, depois que ele foi fechado, teve sucesso. Em mil novecentos e noventa e oito, pelo menos para a suspeição de Jorge, o crime já estava prescrito.
Um crime sem solução deixa todo mundo à espera de respostas, o que dá palco para inúmeras teorias, e não posso deixar de comentar as que até os dias de hoje rondam este caso.
Uma teoria que é improvável, mas não é impossível, é a de que Jorge Toufic, o pai, tenha realmente matado a esposa e se matado em seguida. Mas, nessa madrugada, Jorge filho ouviu tudo, foi até o quarto ver o que tinha acontecido e se deparou com a tragédia.
Vindo de um berço de criminalistas, em uma tradicional família paulista dos anos oitenta, Jorge não poderia deixar que as pessoas vissem seus pais naquele estado, incluindo sua mãe de camisola. Então, ele arrumou os corpos, saiu, foi para a casa de Flávia, ainda em choque com todo o acontecimento, e depois tudo acontece como narrei aqui.
O que corrobora essa teoria é que, além de a linha do tempo dos acontecimentos bater com a linha do tempo do início da manhã de Jorge, ele estaria em posse da chave reserva do quarto dos pais e pode ter trancado a porta por fora. Ao ir para a casa de Flávia, pode ter jogado a arma fora para fazer parecer uma execução.
A segunda teoria dá conta de que Jorge Toufic matou Maria Cecília e foi flagrado pelo filho, que, desorientado, deu dois tiros no pai, sendo um de raspão e outro à queima roupa, na altura do nariz. Em seguida, arrumou os corpos na cama e saiu de casa.
Ambas as teorias esbarram no laudo pericial que constatou que JORGE TOUFIC MORREU PRIMEIRO. Então ele não teria como matar a mulher e se matar, ou matar a mulher e ser morto, já que os exames da necrópsia mostram que ele foi alvejado antes dela.
Surge aí a terceira teoria, de que o que ocorreu foi o contrário: Maria Cecília matou Jorge Toufic com dois tiros e se deu um tiro na cabeça. O som acordou o filho mais velho do casal que foi até o quarto, viu a tragédia, quis evitar o escândalo, arrumou os pais na cama, sumiu com a arma e por aí vai.
De qualquer forma, não estava nada bom para o lado de Jorge. Ou ele matou um de seus pais, colocou o casal morto na cama, fez ali uma ceninha e sumiu com a arma do crime, ou ele não matou os pais, mas mexeu na cena e ainda sumiu com a arma do crime. De toda forma, ele poderia sofrer graves consequências jurídicas por seus atos. Mas se manteve firme na alegação de inocência em todas essas teorias e, sem provas contra ele, o processo caiu.
Jorge não foi sentenciado como culpado; mas, para a opinião pública, ele não era inocente. O limbo entre essas duas realidades poderia acabar com suas expectativas de um bom futuro, ou estremecer sua relação com seus irmãos mais novos, mas não foi isso o que aconteceu.
Por onde anda
Jorge Delmanto Bouchabki é um famoso advogado de São Paulo e trabalha em parceria com seus dois irmãos, Marcelo Delmanto Bouchabki e Graziela Delmanto Bouchabki Fonseca Rodrigues. Ele até ficou em holofote em dois mil e dezoito por representar um dos réus da Operação Lava Jato.
Ele, então, passou eventualmente no vestibular e se formou, mas não sem emoção, digamos assim. Faltando poucas semanas para a formatura, a instituição de ensino em que estudava acusou Jorge de falsificar cheques para pagar a matrícula. Ele precisou ser aceito em outra instituição superior para se formar em direito.
A firma de advocacia que tem com os irmãos é independente da firma dos parentes da mãe, meio que como uma tentativa de se dissociar daquela história. As crianças da Rua Cuba quiseram escrever o próprio destino, mesmo à sombra de uma tragédia que repercutiu como um grande mistério.
E, por atuarem juntos e serem aparentemente muito unidos, a gente vê que, possivelmente, os irmãos não consideram Jorge sequer um suspeito. Afinal, se eram mesmo uma família tão unida – e continuam sendo –, os irmãos guardariam algum rancor caso suspeitassem do envolvimento de Jorge. Né?
A imprensa tenta, até hoje, falar com Jorge Delmanto sobre esse assunto, mas ele se esquiva. Disse, para a Folha de São Paulo, em dois mil e dezoito, que até entenderia ser tratado como suspeito, mas não foi o que aconteceu. Ele disse que sempre foi considerado culpado. E que dorme tranquilo porque não matou os pais.
E essa é a última declaração pública que encontramos de Jorge, e não encontramos nenhuma de seus irmãos. Em contrapartida, nossas fontes estão recheadas de matérias, vídeos e até uma sentença proferida em ação movida pelos Delmanto contra um advogado que escreveu um livro sobre o crime, acusou Jorge e foi inocentado pelo juiz da causa.
Isso demonstra que, embora os personagens principais da trama escolham, com todo direito, se calar, a população ainda não está satisfeita com o desfecho em aberto do crime da Rua Cuba. É possível encontrar teorias mil em canais de YouTube e episódios de podcast, mas a verdade é que, talvez, a solução desse crime tenha morrido com Maria Cecília e Jorge Toufic, naquela madrugada de vinte e quatro de dezembro de oitenta e oito, pouco antes de alguma rádio começar sua programação matinal com Cazuza cantando FAZ PARTE DO MEU SHOW nas paradas de sucesso.
Fontes:
- Aventuras na História – O crime da Rua Cuba: O assassinato não solucionado que chocou o Brasil URL: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/o-crime-da-rua-cuba-o-assassinato-nao-solucionado-que-chocou-o-brasil.phtml
- Superior Tribunal de Justiça – Documento em formato PDF URL: https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ITA?seq=1019405&tipo=0&nreg=201000855545&SeqCgrmaSessao=&CodOrgaoJgdr=&dt=20110207&formato=PDF&salvar=false
- Consultor Jurídico – Juízes dão razão a advogado que acusou Jorge Bouchabki URL: https://www.conjur.com.br/2003-out-06/juizes_dao_razao_advogado_acusou_jorge_bouchabki
- Folha de S.Paulo – Inocentado no crime da Rua Cuba é hoje advogado na Lava Jato URL: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/02/inocentado-no-crime-da-rua-cuba-e-hoje-advogado-na-lava-jato.shtml
- YouTube – Vídeo: O crime da Rua Cuba URL: https://www.youtube.com/watch?v=IfHOzrkitEs
- YouTube – Vídeo: Crime da Rua Cuba – Documentário URL: https://www.youtube.com/watch?v=V3zs95Py9eY
- YouTube – Vídeo: Ainda não resolvido: O crime da Rua Cuba URL: https://www.youtube.com/watch?v=zD5XA9FC0xQ