Roteiro: Hannah Ramos
Brasil, ano de 1960. Os jornais cariocas estavam em polvorosa. Só se falava dela, a mulher assassina, de 22 anos. Como todo crime, os pormenores que estavam envolvidos interessavam muito; uma verdadeira história de amor que se transformou em tragédia e vingança. Os jornais se encarregaram de cobrir tudo: desde as motivações até a tentativa de confissão. A população estava pronta para fazer justiça e por isso, todo cuidado era pouco para evitar que a criminosa fosse alvo de uma represália do povo, inconformado com tudo o que havia acontecido.
A justiça entrou em ação, os dias foram passando e a vida continuou. Afinal de contas, cada dia é uma luta diferente. Por mais tenebrosas e difíceis que sejam as notícias, a vida continua.
Anos se passaram e o programa Linha Direta reconstituiu esse caso. O programa acabou refrescando a mente das pessoas sobre aquele dia tenebroso. E quem nunca tinha ouvido falar naquele caso passou a conhecer. Definitivamente, era um crime impensável, por vários motivos. Em 2007, uma outra fonte vinculada à Editora Globo lança um livro contando novamente toda a história, mas dessa vez trazendo dados um pouco diferentes do que o programa noticiou na época, levantando motivos mais polêmicos para a ação da criminosa.
Independentemente de qualquer narrativa, os fatos também falam: e nós queremos descobrir o que estava por trás da mente de uma mulher suburbana, acima de qualquer suspeita.
Então eu te convido a voltar um pouco no tempo, comigo, pra gente começar a falar da história de vida da nossa personagem.
Neide Maia Lopes nasceu em 2 de março de 1937, no Rio de Janeiro. Ao longo da sua infância, o Brasil vivia uma promessa de modernização iniciada no Governo Vargas, com a implantação de meios mais tecnológicos de industrialização e urbanização e a mídia da época presenciava a ascensão de novas formas de difundir informação e aprimorar a comunicação. Todas essas mudanças influenciavam a forma de viver em sociedade e a visão a respeito do papel de homens e de mulheres.
A infância de Neide foi uma infância comum, mas há quem diga que seus comportamentos já mostravam uma certa estranheza na sua personalidade. Em algumas fontes, é possível encontrar informações de que, ainda menina, Neide era uma criança super protegida pelos pais, que não a deixavam socializar com outras crianças. Sua vida, naquela época, parecia ser um verdadeiro marasmo.
A sua personalidade foi se desenvolvendo e, conforme crescia, se tornava uma jovem introspectiva, que gostava de ficar recolhida. Neide encontrava conforto e companhia em seus livros, onde passava horas e mais horas se divertindo e se entretendo. Ela não era o que muitas pessoas considerariam atraente, por conta de alguns traços físicos que fugiam de um determinado padrão que é esperado da mulher, principalmente se pensarmos no seu nariz, que era bem marcante. Mas para além disso, Neide fumava muito e volta e meia tinha alguns episódios de depressão.
Aos 22 anos, ela pegava todos os dias o trem para trabalhar. Aquele trajeto de trem era uma rotina e, então, poucas coisas chamavam sua atenção por não serem novidade. Por causa disso, ela passava as viagens de trem imersa nos papeis dos seus livros e jornais. Um fato curioso sobre ela era que ela adorava ler casos de mistérios e as histórias de Nelson Rodrigues.
Em um determinado dia, tudo mudou. Pela primeira vez Neide encontrou algo mais interessante para dedicar a sua atenção enquanto voltava do trabalho. Antonio Couto Araújo, um funcionário público, que trabalhava como motorista, até então um completo estranho, estava no mesmo vagão que o seu e resolve puxar assunto.
Os olhares se encontraram, assim como o surgimento daquele desejo mútuo de conhecer mais a outra pessoa. Não demorou nada pra que os dois se encontrassem com uma certa frequência e que passassem a fazer passeios sozinhos; dando início a um relacionamento amoroso.
Ao longo de seis meses, Neide e Antonio estavam juntos, em meio a toda aquela paixão de início de relacionamento. Até que um dia Neide descobriu que Antonio estava guardando um segredo que poderia colocar em jogo a história que estavam construindo juntos: ele era um homem casado e tinha duas filhas pequenas com Nilza, sua esposa. Primeiro de tudo: Antonio mentiu para Neide, dizendo que era solteiro quando se conheceram.
Mas Neide, que a essa altura estava completamente apaixonada, pela primeira vez em sua vida encontrou todo o carinho e afeto que não teve em sua infância, decide continuar com Antonio, como sua amante, enquanto Antonio promete se divorciar de sua esposa. Aquela história clássica, vocês conhecem bem. Para Neide, aquela situação era muito dolorosa. Ela amava Antonio, mas tinha vergonha de sua condição. Era a amante. Imagina se seus pais descobrissem, o que poderia acontecer? Ela já tinha perdido a sua virgindade com Antonio, sendo uma mulher solteira. Isso, por si só, era um choque para a sociedade da época.
O tempo foi passando e Antonio não fazia nada, tudo estava muito cômodo pra ele naquela situação. Neide, por outro lado, sentia que precisava fazer alguma coisa. Descobriu então o endereço de sua casa e resolveu se aproximar de sua família.
Neide visita a casa de Antonio e Nilza, dizendo que era uma antiga amiga de escola Nilza, perguntando se ela não se lembrava. Disse até que haviam morado na mesma rua. Além de descobrir o endereço e o nome da esposa de Antonio, ela resolve mentir sobre seu próprio nome, dizendo que se chamava Nilza também. Nilza, a verdadeira, fingiu que lembrou daquela história pra não parecer arrogante. Decide chamar sua suposta colega de infância para entrar e oferece um lanche.
E foi aí que tudo começou.
As visitas de Neide acabaram se tornando cada vez mais recorrentes. Elas, a cada encontro, iam se aproximando cada vez mais, como se a amizade entre as duas estivesse ressurgindo.
Eu vou chamar a Neide de Neide e a Nilza de Nilza pra gente não confundir a história, mas lembrem que Neide inventou que se chamava Nilza também, ok? Vamos voltar pra história:
Neide aproveita dessa situação e resolve de fato se aproximar de Nilza e forçar uma amizade. Num dia aparece levando um bolo, no outro combina de tomar café e assim as duas começam a construir uma intimidade. Até que um dia Neide pergunta para Nilza sobre seu casamento, já que ela quase não falava do marido.
Nilza disse que tinha um casamento bom, que amava seu marido, mas que tinham desentendimentos como qualquer casal. Nessa altura, Neide já havia conhecido a pequena Tânia, de 4 anos, filha do casal, que era o xodó de Antônio. Além da Tânia, havia mais uma outra criança, filha mais nova do casal, de um ano e meio.
Bom, os dias se passaram. Neide e Antonio continuavam se vendo sem que Antonio suspeitasse de nada. Ele não fazia ideia que Neide estava fazendo algumas visitas à sua casa e se tornando amiga de Nilza. E como eu falei pra vocês, Neide havia perdido a sua virgindade com o Antonio mesmo sendo uma coisa super delicada na época. Mulheres solteiras que não eram virgens eram “putas”.
Nesse meio tempo, Neide reclamava de passar mal, mas não achava que era nada demais. Até que um belo dia ela faz um teste de gravidez, só por desencargo de consciência. Já imaginam o que aconteceu, né? Ela estava grávida de Antonio. Neide ficou muito feliz com essa notícia e foi contar pra ele. Ela disse que nada mais importava, que ela não queria mais ficar com Antonio e que ele poderia continuar com sua esposa e família. Agora, ela estava completa, ela só viveria para esse bebê. Ela estava tão feliz que pensou até que os seus pais a perdoassem quando descobrisse que estava grávida.
Ao contrário do que ela imaginava, Antonio não gostou nada de receber essa notícia. Ele queria que ela abortasse. Para Neide, essa resposta soou como uma afronta. Ela deu um tapa em Antonio e recebeu outro tapa de volta.
Neide mais uma vez reforçou que queria a criança e que não se importava em terminar aquele relacionamento. Ela inventaria para os pais alguma história sobre o genitor da criança e eles nunca descobririam quem era. Antônio, por sua vez, a ameaçou. Disse que o filho não poderia nascer e que se ela deixasse de falar com ele, escreveria uma carta anônima a sua família contando toda a verdade para os pais dela. Ela criaria a criança sozinha e estaria disposta a mentir para salvar a pele de Antonio, mas aquilo não foi resolvido.
Depois daquele dia, Antonio e Neide meio que se afastaram. Ficaram um tempo sem se ver. Neide continuou visitando Nilza e cada vez mais foi se aproximando de Tânia, a filha de Antonio. Importante falar também que nesse mesmo tempo, Neide se aproximou de uma amiga de infância chamada Zizélia. Parece que a mãe de Zizélia costumava alugar uma casa da família de Neide e elas se tornaram amigas desde então. Hoje Zizélia era casada e tinha sua vida, e reencontrar Neide naquele momento foi muito natural e especial para as duas.
Um dia, Neide estava andando pelas redondezas com Zizélia, quando passaram em frente a um matadouro. Neide ficou curiosa e começou a perguntar pra amiga desde quando tinha aquele matadouro, se ela conhecia o dono, coisas assim… Guardem essa informação.
Voltando para a relação entre Antonio e Neide, a gente já sabe que o relacionamento estava um pouco estremecido. Eles ficaram uns dois meses distantes um do outro porque Neide não aceitava tirar o bebê. Até que num belo dia, Antonio apareceu. Ligou para Neide, disse que eles precisavam se ver e retomar o relacionamento, falou que sentia muita falta dela e que inclusive a buscaria em casa para fazer um passeio na Zona Sul do Rio de Janeiro. De lá, eles iriam a casa de um amigo do Antonio e ele finalmente a apresentaria para esse amigo, já que ela não conhecia nenhum amigo dele.
Eles chegaram em um apartamento na Rua Voluntários da Pátria e Antonio apresentou esse amigo a ela. E aí vem uma informação importante: não sei se eu já comentei com vocês aqui nesse episódio, mas a Neide tinha o hábito de escrever em um diário. Muitas coisas que nós estamos falando aqui foram tiradas desse diário dela. No dia em que ela foi levada para aparentemente conhecer o amigo de Antonio, Neide relata em seu diário que se lembra apenas de sair daquele prédio muito tonta, com enjoo e náuseas, algumas horas depois. E que somente depois de Antonio ter dado uma carona para que ela chegasse em casa, ela percebeu o que havia acontecido. Ela sentiu muitas dores e teve uma forte hemorragia, tendo a certeza de que havia abortado seu bebê. Antonio a levou para uma clinica médica, sem o seu consentimento, para realizar um aborto.
Dias depois, como quem não quer nada, Antonio começou a se fazer de desentendido. Perguntou como estava a gravidez, como ela estava se sentindo… Neide era puro ódio. Antonio precisava pagar por tudo o que ele estava fazendo ela passar. E mais do que isso, na cabeça de Neide, ela jamais poderia denunciar Antonio, porque isso implicaria que todos soubessem desse romance às escondidas que nem existia mais. Seria muito pior se ela fizesse alarde. Ela precisava ficar na dela.
Por conta de tudo isso que estava sofrendo e sentindo, Neide passou a alimentar um “forte desejo de vingança” contra Antônio. Ela vai a uma loja de armas e busca por uma arma potente, calibre 32. O matadouro que ficava perto da casa da sua amiga também parecia ser um objeto de seu interesse, porque cada vez mais ela perguntava à Zizélia sobre o local e fazia alguns comentários sobre o que devia acontecer ali dentro.
É como diz aquela frase: cada segundo é tempo de mudar tudo para sempre.
Neide resolve, então, ligar para a escola de Taninha, se fazendo passar por Nilza. Ela diz ao telefone que está doente, avisando que uma amiga de nome Odete buscaria Taninha na porta da escola. A diretora permitiu que essa amiga fosse buscar a menina e desligou o telefone. Estava tudo combinado. Momentos depois quem chega na escola? Ela mesma, Odete! Quer dizer, Neide, se passando por Odete. Taninha obviamente reconhece Neide por conta das várias vezes em que ela esteve na sua casa, então ela sai da escola junto com Neide.
As duas passeiam por algumas horas pelas redondezas de Piedade. Parece que ali, ao longo desse passeio, Neide ligou para Nilza, mãe de Taninha, sem se identificar, e disse ser o sequestrador da sua filha. Depois disso, Neide pegou Taninha e levou para casa de Zizélia, no bairro da Penha.
Chegando lá, Neide pediu a Zizélia uma tesoura e cortou os cabelos da menina. Zizélia não estava gostando nada daquilo e achou tudo muito estranho. Mas Neide fazia de conta que estava tudo bem, que a mãe da menina realmente havia pedido para ela buscar a criança na escola e ainda por cima pediu para que cortasse seu cabelo. Neide alimentou a menina, se despediu da amiga, e depois foi embora.
Pegou Taninha pelo braço e seguiu com a menina pelas ruas de Piedade. Comprou pipoca, bala, pirulito e várias coisas que as crianças gostam. Depois disso ela entrou em um armazém e foi comprar álcool. As duas ficaram sentadas em uma pracinha, até que foi ficando tarde e Neide foi andando com a menina para os fundos do matadouro. Quando chegaram lá, Neide empurrou a menina para ela andar na sua frente, mas Taninha caiu de lado na grama e se sujou de barro. Ela acaba machucando a coluna e começou a chorar. Neide então pega o revólver Taurus, calibre 32, que estava em sua bolsa. Aponta para a cabeça de Taninha e atira.
No mesmo instante, sem nem pensar muito, Neide abre a garrafa de álcool e joga em cima da menina ainda viva. Pegou uma caixa de fósforos, acendeu e jogou sobre ela, que estava toda molhada. O fogo subiu muito rápido e o cheiro de fumaça também. As pessoas que moravam ao redor viram aquilo e foram correndo em direção ao fogaréu. Chegando lá, conseguiram parar o fogo e encontraram um corpo. O corpo de Taninha, morta e queimada.
Quando se deu conta do desaparecimento da filha, Antonio prontamente liga para Saulo, um amigo seu que era jornalista, dizendo que sabia quem havia sequestrado sua filha, mas disse que tinha certeza que ela estaria bem, sem ferimentos. Ele conta que Neide era uma namoradinha, uma pessoa com quem tinha eventuais encontros, e que ela jamais faria algo contra sua filha.
A policia vai até a casa de Neide e dá de cara com os pais dela. Neide chega e pede para levar os sapatos, que estavam muito sujos. A policia faz algumas perguntas logo ali, mas decidem levar Neide para a delegacia. Ela precisava ser interrogada.
Quando o interrogatório começou de fato, Neide disse à polícia que, na verdade, Nilza era amante de seu noivo e que provavelmente seu noivo fez isso com a criança. Olha o nível de desconexão com a realidade!
Neide, adotando uma pose de muita tranquilidade, negou o envolvimento no sequestro, fazendo pose para os fotógrafos que já estavam de plantão na frente da delegacia. A notícia se espalhou muito rápido. Como ela sustentava aquele personagem, os policiais decidiram usar duas estratégias para tentar acabar com a estabilidade emocional dela: deixaram ela em pé ao longo de todo o interrogatório e proibiram Neide, que era fumante, de fumar.
Depois de doze horas, através de muita insistência de Saulo Gomes em entrevista-la, a policia permitiu. Neide respondeu às perguntas feitas por ele, ao vivo, na Radio Continental: “Eu não vou dizer nada. Agora, sabe de uma coisa? Sabe de uma coisa? Eu queria matar a família toda, infelizmente eu não tive tempo.”
Ela praticamente confessou o crime em rede nacional. Aquilo causou uma comoção absurda. Comoção popular mesmo. Pra vocês terem uma ideia ela só não foi apedrejada porque a polícia imaginou que isso poderia acontecer e pensou em uma forma de tirar ela da delegacia sem que ninguém percebesse.
Ela foi transferida para a Penitenciária Lemos de Brito. O pai da Neide contava que, naquela época, diariamente, encontrava despachos de macumba na porta de sua casa: velas pretas e vermelhas, galinhas mortas e bonecas com o nome da filha espetadas com agulhas. Neide havia sido condenada a 33 anos de prisão. Na cadeia, ela cuidava da própria chave da cela e tinha uma televisão portátil. Ela gostava de costurar roupas de crianças e de cuidar de uma boneca, que recebeu de presente, como se fosse a própria filha.
Após 15 anos de reclusão, Neide conseguiu liberdade condicional.
Nunca se casou. Nunca teve filhos. Ela morou com seus pais até que eles morressem. A última notícia que se teve sobre ela era que vivia reclusa, não saia de casa para nada. Morava no segundo andar de um prédio, onde a janela só vivia fechada, até mesmo no verão.
Se estiver viva, Fera da Penha completou 85 anos em 2022.
Antonio e Nilza, por sua vez, mantiveram o casamento. Tiveram mais dois filhos e alguns netos depois disso. Taninha, enterrada no cemitério de Inhaúma, é visitada até hoje por uma legião de pessoas que acredita que a menina tem poderes. Muitas pessoas vão até lá agradecer as bênçãos alcançadas em nome da menina. Colocam flores, cartas, placas, tudo em agradecimento.
Roteiro: Hannah Ramos