Até onde você iria para participar de um programa de TV tipo reality show? Em Portugal, um jovem denunciou o próprio pai como responsável por assassinatos brutais que assombram Lisboa até os dias de hoje.

O ano é mil, novecentos e noventa e dois, ou seja, exatamente trinta anos atrás. Uma jovem de vinte e dois anos, identificada como Maria Valentina, é encontrada morta atrás de um barracão na cidade de Lisboa, capital de Portugal. Seu corpo tem marcas de ferimento à faca na barriga e nas costas. Ela era baixa, magra, tinha cabelos castanhos e trabalhava como prostituta.
Uma coisa na cena do crime chama a atenção da polícia: seus órgãos internos foram removidos da cavidade corporal. O crime chocou a comunidade pela brutalidade. O corpo tinha sido reduzido a mero brinquedo de algum sádico, muitos diziam, que explorava a anatomia humana da forma mais bizarra possível.
Um ano se passa e, em janeiro de mil, novecentos e noventa e três, outra Maria é achada sem vida. Dessa vez, Maria Fernanda, de vinte e quatro anos, também prostituta. Seu corpo também é encontrado atrás de um barracão de obras por trabalhadores da rede ferroviária de Lisboa.
Na cena do crime, a assinatura é reconhecida: com ferimentos a faca por todo o corpo, assim como a primeira vítima, Maria Fernanda também teve os órgãos internos removidos e expostos. Dessa vez, o assassino também lhe cortou os seios.
A polícia judiciária de Portugal se ligou na hora de que, provavelmente, havia um serial killer por aí. Não só pela tal da assinatura criminal, que é expor dois corpos da mesma forma, mas por delimitar um padrão: duas jovens prostitutas de estatura baixa, magras e de cabelos e olhos castanhos.
Caso não fosse uma mesma pessoa que tivesse cometido os dois crimes, isso poderia se tratar de uma coincidência imensa. Os peritos, então, resolveram investigar o caso e, de certa forma, aguardar. Sem pistas, o máximo que podiam fazer para entender se aquilo era obra de um mesmo autor era… esperar. Era questão de tempo até que ele cometesse um novo crime nos mesmos moldes.
Dito e feito: em março de mil, novecentos e noventa e três, Maria João, de vinte e sete anos, prostituta, de estatura baixa, magra, de cabelos e olhos castanhos, foi encontrada morta a cem metros do local da primeira vítima, em mil novecentos e noventa e dois. Seu corpo estava brutalmente mutilado e todos os seus órgãos foram removidos, incluindo o pulmão e a vagina.
Havia, então, um perfil de vítima, mas não um suspeito. O que se sabia sobre ele era que seu alvo eram prostitutas e que sua assinatura criminal era o ato de estripar as vítimas. Isso, claro, gerou um enorme caos e pânico entre as prostitutas de Lisboa, e entre as mulheres que, mesmo não sendo garotas de programa, se encaixavam na descrição física preferida pelo estripador de Lisboa, como ele tinha ficado conhecido.

Portugal é um país relativamente pequeno da Europa, com cerca de dez milhões de habitantes, segundo dados de dois mil e vinte e um do Banco Mundial. Conhecemos mais sua história por ser o país que colonizou o Brasil e por suas celebridades, como Cristiano Ronaldo e Roberto Leal, do que por seu histórico de crimes.
Aliás, tomando de cabeça, além do caso do Estripador de Lisboa, que é este que estamos contando, o outro caso criminal famoso de Portugal é o desaparecimento de Madeleine McCain, a menininha inglesa que sumiu após férias de família em um resort da Praia da Luz.
Para se ter uma ideia, em mil, novecentos e noventa e dois, quando a primeira vítima foi encontrada, pouco menos de noventa e três mil ocorrências policiais foram registradas em TODO o país, sendo que, desse total, apenas duas mil, cento e trinta e três eram crimes contra pessoas.
Coloque aí nessa conta não só homicídios mas também violência doméstica, agressão, briga de rua, roubo qualificado com violência e por aí vai. Todos os outros crimes registrados eram contra o patrimônio, ou seja, uma invasão residencial, pichação, essas coisas assim.
Para um país que vivia com esse tipo de índice criminal, encontrar uma jovem estripada com inúmeros requintes de crueldade não era apenas avassalador: era algo para causar pânico geral. Afinal, infelizmente, o crime existe e sempre existiu. Não há lugar que passe um ano sem ter um homicídio. Porém, quando o ataque é monstruoso, de forma que as vítimas são reduzidas a um monte de órgãos expostos em um beco escuro, a coisa muda de figura.
Não é um assassino qualquer. A população, com as informações da polícia judiciária e do perfil traçado por ela, acredita estar lidando com um sádico, um psicopata que age a sangue frio e sem nenhum remorso.
Aliás, até mesmo para definir um perfil desse criminoso foi preciso ajuda externa – e ela veio de ninguém menos que o FBI. Como nos Estados Unidos tem muito histórico de criminosos realmente MAUS e cruéis, eles poderiam dar uma mãozinha aos portugueses que estavam vendo aquilo quase que pela primeira vez.
Agentes americanos foram até Portugal para auxiliar a polícia judiciária a desenhar uma personalidade para o Estripador de Lisboa. Colhendo o que aparecia de informação sobre o caso, de alguma possível testemunha, e identificando alguns sinais deixados por ele na cena do crime, e as autoridades chegaram à seguinte descrição:
O Estripador de Lisboa seria um homem branco, que teria entre trinta e trinta e cinco anos de idade na época dos crimes, com traços de personalidade esquizóide. Esse transtorno é caracterizado por falta de interesse em relacionamentos sociais de qualquer natureza, como amigos, namoradas e até familiares.
Contudo, o transtorno de personalidade esquizoide NÃO é um indicativo de sociopatia ou psicopatia, por si só. Os portadores têm uma limitação severa em suas interações sociais, mas nem todo esquizóide vai levar suas questões às vias de fato.
No caso do Estripador de Lisboa, o que teria feito com que ele chegasse a matar pessoas era algum problema com sua própria sexualidade, já que seu modus operandi deixava claro o ódio contra as mulheres, e mulheres de um padrão físico bem específico.
Os peritos de Portugal e do FBI traçaram o perfil de alguém que poderia ter sido abusado na infância. Eles estudaram os casos e viram que também é possível que o assassino tenha tido uma mãe superprotetora e, com isso, tenha desenvolvido com ela um relacionamento bastante tóxico. Nessa linha de pensamento, ele ainda poderia morar com a mãe, até os dias do cometimento do crime, e ela não perceberia nada de diferente no jeito do filho, já que continuaria olhando para ele como um bibelô a ser sempre protegido e cuidado.
Outra hipótese é que o criminoso tenha sofrido alguma perda severa em sua vida, que o levou a matar como forma de espantar seus próprios demônios ou aliviar o seu trauma. De qualquer forma, certo era que ele estripava as vítimas como forma de retirar delas o significado de ser humano, sua personalidade.
Segundo os peritos, é como se, ao matar e decompor suas vítimas, o Estripador as posiciona como um mero lixo, e não como um ser humano, e estava aí a sua gratificação. A brutalidade de seus atos era tanta, e ele tinha tão pouco apreço pela, abre aspas, estética de seus crimes, fecha aspas, que ele não criava cenas de crime: ele esganava as mulheres até deixá-las inconscientes e, conforme caíam no chão, era dessa forma que ele as esfaqueava e estripava.
Ele não mexia nos corpos depois do ato – e a suspeição por ser um homem o estripador, e não uma mulher, é pelo contexto da época, já que as prostitutas aceitavam mais ofertas de programas de homens e não perguntavam nada sobre eles. Simplesmente os levavam a um beco escuro, faziam o programa, recebiam por ele e iam embora.
Cá entre nós, visto que era esse o jeito de trabalhar dessas mulheres, elas se tornavam alvos fáceis para um serial killer. Para complicar ainda mais, testemunhas disseram que as três vítimas eram dependentes químicas e deviam dinheiro a traficantes. Segundo a polícia, isso poderia explicar o motivo da morte, mas não a forma, já que dívidas de tráfico raramente são encontradas com tanto requinte de brutalidade.
As duas últimas vítimas, Maria Fernanda e Maria João, se conheciam pessoalmente e, aparentemente, eram amigas, mas essa pista também foi um beco sem saída para as autoridades.
Entre mil, novecentos e noventa e três e mil, novecentos e noventa e sete, quatro crimes bem parecidos com esses de Lisboa ocorreram em outros quatro países da Europa, o que levou os investigadores a acreditar que o assassino poderia ser, por exemplo, um motorista de caminhão, que viajava para um lugar, fazia uma vítima e rapidamente se deslocava para outro lugar.
Vale lembrar que, no início dos anos noventa, as informações não corriam tão rápido quanto hoje em dia, com internet e redes sociais. Por isso, até mesmo a identificação de sinais parecidos entre os assassinatos por toda a Europa demorou para ser feita, e o caso esfriou de vez.
Ainda em mil, novecentos e noventa e três, os casos das três Marias mortas em Lisboa, Maria Valentina, Maria Fernanda e Maria João, foram arquivados por falta de provas ou suspeitos. A única coisa que poderia ter trazido mais informações à polícia eram as bitucas de cigarro deixadas na cena do crime, mas, nas nossas pesquisas, não fica claro se elas não encontraram correspondência no banco de dados das autoridades ou se elas foram sequer examinadas como evidência.
Em dois mil e oito, dezesseis anos após a primeira vítima ser encontrada, os três assassinatos tiveram a pena prescrita em Portugal. Isso significa que, mesmo que o Estripador de Lisboa fosse encontrado, a partir de então ele não poderia mais ser preso por esses atos cruéis.
Isso poderia ter causado certa tranquilidade no autor dos crimes, já que, se viesse à público confessar, ganharia a notoriedade pelo fato, mas não iria para a prisão. Contudo, em dois mil e oito, ninguém sabia quem era o Estripador de Lisboa.
Em dois mil e onze, Portugal ganhou uma pista de quem poderia ser o serial killer de prostitutas, e tudo por causa de um reality show.
Em dois mil e dez estreou em Portugal um programa de televisão chamado Casa dos Segredos. Era uma espécie de Casa dos Artistas e Big Brother, com a diferença de que, para ser selecionado a participar do programa e concorrer ao prêmio final de cinquenta mil euros, era preciso que os candidatos ao confinamento contassem à produção um segredo.
O objetivo do jogo era que os concorrentes, isolados por noventa dias, descobrissem o maior número de segredos entre as pessoas da casa. Só de curiosidade, em dois mil e onze, o vencedor da edição foi João M., e só M., mesmo, gente, não tem o sobrenome da figura, que entrou com o segredo de que foi vítima de violência doméstica. Ele foi quem descobriu mais segredos dos outros participantes.
E por que estou falando dessa edição desse programa? Porque foi exatamente para a Casa dos Segredos Dois que Joel Guedes, de vinte e um anos, se candidatou com um segredo bizarro: ele conhecia o Estripador de Lisboa.
Pelo menos foi isso o que disse para a produção do programa, que ficou, obviamente, de queixo caído. O jovem denunciou que seu pai, José Pedro Guedes, era o assassino das prostitutas. Em dois mil e onze o homem trabalhava como operário da construção civil, tinha quarenta e seis anos e trabalhava no setor de construção de Lisboa na década de noventa.
Portanto, tinha a faixa etária que a polícia acreditava ser a do Estripador. Joel, o filho, não entrou para o programa, mas uma jornalista portuguesa, ao saber da tentativa a partir dessa denúncia, foi atrás da história, que ganhou as manchetes nacionais.
José Pedro Guedes deu entrevistas confessando os crimes e adicionando mais dois à conta: uma prostituta na Alemanha, em mil novecentos e noventa e quatro, onde morou como imigrante, e uma em Aveiro, cidade de Portugal, nos anos dois mil. Segundo ele, tudo era documentado em um diário que escrevia durante décadas, e os cadernos relatavam detalhes que a polícia não tinha sobre as cenas dos crimes.

José Pedro disse, por exemplo, que escolhia as vítimas por se parecerem com sua mãe, que o abandonou aos dois anos de idade. Ele supostamente voltou a vê-la aos quinze anos, mas não superou esse rancor. A história também batia, mais ou menos, com o que a polícia tinha levantado de potencial personalidade do assassino.
José Pedro chegou a ser detido e preso preventivamente quando enviou uma mensagem a uma das jornalistas dizendo que estava com, abre aspas, vontade de matar novamente, fecha aspas.
Porém, as investigações, que foram reabertas com a denúncia de Joel, deram a entender que José Pedro estava mentindo. Os dados não batiam, assim como algumas marcas físicas, como a palma da mão do assassino, sinal encontrado em uma cena de crime. Outras evidências mantidas em sigilo pela polícia também o eliminaram como o autor dos assassinatos.
Pressionado, Joel Guedes disse que inventou a história para conseguir entrar no programa Casa dos Segredos, e que o pai NÃO era o Estripador de Lisboa. O próprio José Pedro deu novas entrevistas no fim de dois mil e onze dizendo que essa foi uma brincadeira que lhe custou caro, e que não era, de fato, o assassino das três mulheres.
Mas que brincadeira de mal gosto, hein, meu senhor? Tudo isso para que o filho pudesse ter um pouco de fama em um reality show… pelo menos o cidadão não foi nem escolhido para participar do programa…
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E onde isso nos deixa? No ponto de partida: trinta anos depois do assassinato de Maria Valentina, não se sabe quem é o Estripador de Lisboa. Não se sabe se está vivo, morto, se foi preso por outros crimes ou se vive uma vida plena, longe de qualquer suspeita.
Existe um perfil psicológico traçado por especialistas do FBI, mas ninguém jamais foi à polícia denunciar um amigo, colega, irmão ou vizinho que tivesse os sinais mínimos que o levassem a se tornar suspeito. Esse é um homem sem rastro, sem sombra. Ele não limpava o sangue das vítimas, não limpava a cena do crime – ao contrário, deixava ali as bitucas de cigarro -, é possível que ficasse na cena por muito tempo, já que estripar uma pessoa não é uma atividade rápida, para dizer o mínimo, e mesmo assim, mesmo com todo esse eventual desleixo, ele nunca foi encontrado.
Nada.
Nenhuma pista.
Como dizem os peritos que investigam crimes sem solução, alguém, em algum lugar, conhece o Estripador de Lisboa, mas é bem possível que nem ESSA pessoa saiba do que ele fez ou, pior, se estiver vivo, do que pode ainda estar fazendo, seja em Portugal ou em qualquer outro lugar do mundo.
Roteiro e pesquisa: Lais Menini