Roteiro Dália Negra
Aqui no Casos Reais já dissemos várias vezes que não existe crime perfeito… mas o caso Dália Negra é um daqueles que faz a gente lembrar que toda regra tem sua exceção…

Dois mil e vinte e três e quem nunca teve aquele probleminha com o pai ou com a mãe? Principalmente na juventude, final da adolescência… esse período é sempre meio crítico pra todos nós, independentemente do ano ou até do século em que vivemos.
Digo isso porque, se a vida de Elizabeth Short não começa com os problemas que ela teve com os pais na juventude, ela CERTAMENTE termina por conta disso.
Mas, como sempre, vamos começar do começo.
Elizabeth Short nasceu em julho de mil novecentos e vinte e quatro em Massachusetts, e foi a terceira de cinco filhas, todas mulheres, de Cleo e Phoebe Short.
Cleo, seu pai, trabalhava no ramo de construções de campo de minigolfe, que é um hobby muito popular aqui nos Estados Unidos. As coisas iam bem no mercado até que não foram mais… Cleo desapareceu por alguns dias e seu carro foi encontrado à beira de um lago, em um cenário típico de suicídio.
Só que – e eu nunca pensei que iria falar esse adjetivo nesse contexto – INFELIZMENTE não era suicídio. Era abandono. O cara simplesmente resolveu largar a mulher e as cinco filhas depois de uma crise financeira. Aí, tempos depois, quando volta pra casa, vivinho da Silva e com o rabo entre as pernas, Phoebe, a matriarca da família Short, o coloca pra correr.
Ele, então, vai para a Califórnia, um lugar onde Betty sempre quis morar. Ela teve a infância marcada por problemas respiratórios como asma e tuberculose e a brisa praiana era algo que chamava muito a atenção da jovem, que também era muito bonita. Faça as contas: década de vinte, uma jovem bonita, na Califórnia, Hollywood ficando cada vez mais badalada… Los Angeles parecia mesmo ser o lugar certo para ela.
Com um probleminha aqui, outro ali com a mãe e as irmãs, ela então segue para viver com o pai, mas isso dura muito pouco tempo. As versões para o que aconteceu para que Cleo e Betty não morassem juntos foram as mais variadas: ela era uma mulher difícil demais, namoradeira demais, o pai se incomodava com como a beleza da filha chamava a atenção dos homens…
… e aqui você já vai vendo como, quase cem anos depois do nascimento de Betty Short, algumas coisas ainda não mudaram: tão fácil culpar a personalidade da VÍTIMA por ter sido vítima, não é mesmo?
Aliás, um dos maiores empecilhos desse caso foi, desde o início, a imprensa, e você vai conseguir ver o porquê, mas já começa por aí. Não há nenhum registro de que Elizabeth tenha saído de casa porque o pai, AQUELE PAI que simulou suicídio e abandonou a família, fosse abusivo ou, simplesmente, fosse um pai ruim, uma pessoa desagradável.
Contudo, INÚMERAS fontes relataram, por meio de entrevistas, que o problema todo estava em Elizabeth, que era rebelde demais ou chamativa demais, com seus cabelos pretos e olhos azuis…
Pra ganhar a vida, já fora da casa do pai, ela trabalhou por seis meses como garçonete, e foi mais um perfil clichê de Los Angeles: a aspirante a atriz que serve mesas até ser descoberta por um representante de estúdio de cinema e muda a vida dela para sempre.
Só que, no caso dela, não deu nem tempo. Há seis meses morando na cidade da fama, ela fez alguns testes mal sucedidos e acabou sendo também vítima de outro clichê, esse um pouco mais pesado: o de trocar favores sexuais por comida, abrigo e promessas de oportunidades.
E tem um motivo por eu ter dito isso pra você DEPOIS de mostrar como ela foi retratada ao sair da casa do pai. Quando a gente fala sobre uma mulher que tem um sonho e que faz de tudo para conquistá-lo, inclusive acreditar em promessas vazias de homens oportunistas, e um enredo trágico acontece, é fácil voltar um pouquinho no tempo e dizer “mas tá vendo? Ela era difícil! O pai a expulsou de casa porque ela era uma mulher fácil”.
Vale a pena a gente destacar que, para uma história dessas, nada disso deveria importar e uma coisa não teria a ver com a outra, mas, DE NOVO, a imprensa não quis nem saber. Eu preciso te contar que ela tinha esse sonho e fez essas coisas porque, muito provavelmente, isso está ligado com o final da história, mas os jornais da época só fizeram a associação para criar tumulto e escândalo nas páginas de jornais.
Em quinze de janeiro de mil novecentos e quarenta e sete, uma dona de casa, que também se chamava Betty, viu uma cena horrível em um canteiro de obras de um condomínio bem perto do famoso Hotel Cecil, em Los Angeles.
Betty Bersinger passeava a pé com a filha de três anos quando avistou um manequim, desses de loja de roupa, em uma valeta. Conforme se aproximava, viu que não era um manequim, e sim o CORPO de uma pessoa. De uma mulher. Estava completamente mutilado e cortado ao meio.
Ela, então, tampa os olhos da filha e, em choque, aciona a polícia, que chega a Leimert Park para começar a desvendar o que ainda é um dos grandes mistérios criminais dos Estados Unidos. O cadáver era da jovem Elizabeth Short, de vinte e dois anos, e esse corpo dividido ao meio fala muito sobre machismo e feminicídio.
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Quando a imprensa ficou sabendo que um corpo jovem terrivelmente machucado foi encontrado numa valeta de obras, todo mundo correu pra lá. As fotografias tiradas mostravam uma jovem nua, cortada ao meio e com um corte dos lábios até as orelhas, tipo aquele sorriso do Coringa, sabe?
Essas fotos são facilmente encontradas na internet porque demorou um tempo até que a polícia tivesse a dignidade de cobrir o corpo de Elizabeth com um pano…
… mas, neste momento, ninguém sabia quem era a vítima. Ela não tinha nada que a identificasse e ninguém estava procurando por ela, já que ela saiu da casa do pai por conta própria. Dias depois, já identificada, a polícia pediu a Cleo Short que fosse até o necrotério para confirmar que aquela era Betty e ele disse que… NÃO.
A difícil tarefa de reconhecer o corpo da filha ficaria para sua mãe, Phoebe, mas se você não tá bem confortável aí numa cadeira sugiro que procure uma porque senão vai cair pra trás.
Porque a imprensa, com jornalistas e fotógrafos que não cobriram o corpo nu da jovem na cena do crime, a que mais tarde ficou arranjando desculpas para o desfecho da aspirante a atriz, sempre colocando a culpa nela, foi EXTREMAMENTE cruel ao noticiar a morte à mãe dela.
Um jornalista que estava louco atrás do furo de reportagem resolveu entrar em contato com Phoebe e dizer que estava fazendo um perfil dela porque a garota tinha acabado de ganhar um concurso de beleza. Phoebe, então, deu várias informações sobre a infância e adolescência da jovem, e da ida dela para a Califórnia, antes de ser informada que, não, Betty não tinha ganhado nada, mas foi ASSASSINADA com requintes de crueldade.
O jornal ainda pagou a passagem para que Phoebe fosse a Los Angeles com a desculpa de que queria dar a ela toda a assistência no reconhecimento do corpo e nas despesas funerárias, mas a real é que deixaram ela trancada em um quarto de hotel até a publicação das últimas novidades, para que nenhum outro jornal tivesse acesso a ela e pudesse ESTRAGAR a exclusividade de matéria.
É mole?
E o pior é que esse tormento não acabaria com o reconhecimento pela família Short. É óbvio que um crime desses ia ganhar notoriedade, mas a investigação poderia correr normalmente e, eventualmente, um ou mais suspeitos serem apontados, mas a sede por novidades era tanta por parte dos jornalistas que eles não deixaram barato.
Aliás, sabe o nome, Dália Negra? Foi dado por um jornalista, por causa de um filme da época, chamado Dália Azul, em que a atriz Verônica Lake interpretava uma mulher assassinada. Como Betty tinha volumosos cabelos pretos, o trocadilho foi plantado e é, até hoje, o modo como o mundo inteiro se refere ao caso.
A cena do crime foi contaminada, claro, porque era impossível que jornalistas e curiosos tivessem chegado tão perto do corpo sem deixar tudo inútil para a polícia.
Nas evidências, havia a trilha de pneus saindo do local da desova e pegadas de botas nas imediações. A profundidade dessa pisada mostrava que alguém carregou o corpo e, a poucos metros, deixou um saco de cimento vazio com sangue dentro, provavelmente o saco utilizado para transportá-la.
Só que a falta de tecnologia da época não ajudou muito… não ajudou nada, né? As evidências não levaram a nenhum suspeito, e a polícia acreditava que o assassino era ao mesmo tempo organizado e desorganizado, porque ao mesmo tempo que não deixou evidências robustas, até óbvias, e de ter lavado o corpo, o que fez com que ele tivesse sido confundido com um manequim de loja, as mutilações eram meio bagunçadas, até confusas.
Isso sugeria o que hoje a gente já sabe: é um perfil de assassino que tem ódio por mulheres e quer causar um choque com o crime, para além do fato de matar uma pessoa. Os policiais disseram que, pelas condições todas, o assassino poderia ser muito mais rico que a vítima e que potencialmente seria um açougueiro ou caçador, pela habilidade de cortar e limpar o corpo.
A necrópsia mostrou que possivelmente a jovem passou por uma semana de intenso sofrimento e violências, inclusive sexual, antes de ser morta. O corte nas laterais da boca, chamado “Sorriso de Glasgow”, funcionou como um sinal de grande agressividade e sarcasmo, mas Betty ainda tinha lesões e cortes na cabeça que, segundo os especialistas, apontavam rancor.
Era como se a pessoa que a matou quisesse acertar as contas com ela. O corpo tinha cortes profundos nas coxas e nos seios, com pedaços realmente fatiados, indicando sadismo e passionalidade. Ele estava limpo, com sangue drenado, mas cheio de lacerações e marcas de tortura.
Eu sei que tudo isso é terrível em níveis inimagináveis, mas, pra piorar, foram encontradas fezes no estômago dela, o que significa que provavelmente ela foi OBRIGADA a engolir os dejetos antes de morrer.
Todo esse cenário assombroso foi investigado pelas autoridades estaduais e federais e dissecado pela imprensa, mas o assassino nunca foi encontrado. Claro que, ao ver que o caso estava nas manchetes de jornal, mais de SESSENTA pessoas confessaram a culpa, o que traria muita fama, mas nenhuma delas foi realmente levada a sério.
VINTE E CINCO SUSPEITOS foram investigados e alguns deles ficaram bem famosos. Vamos falar sobre eles.
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O primeiro é Robert Manley, vendedor que teria oferecido uma carona para Betty logo após ela ser mandada embora da última casa em que esteve hospedada, da família French. Ele disse à polícia que passou a noite de oito de janeiro com Betty e a deixou no Biltmore Hotel, onde, segundo ele, ela se encontraria com a irmã.
Ele chegou a confessar o crime, mas anos mais tarde indicou que não sabia nada sobre o caso ao ser interrogado com o chamado soro da verdade. Especula-se que talvez ele tenha acreditado que cometeu o crime, mesmo sem ter feito isso, porque ele entrou em uma crise de depressão profunda na época do assassinato e chegou a ser internado em um hospital psiquiátrico.
Outro suspeito foi Arnold Smith, que tinha sido fichado pelo assassinato de Georgetee Bauerdorf, ex-namorada dele, um ano antes do assassinato de Betty. Contudo, as investigações não avançaram nesse sentido, embora em seus depoimentos ele tenha dito que ouviu dizer que ambos os crimes foram cometidos por Al Morrison.
Al Morrison não existe e é possível que seja apenas um alter ego de Arnold.
Mark Hansen, outro suspeito, era dono de uma boate que Betty frequentava e onde chegou a trabalhar. Ele tinha salas de cinema e um cassino clandestino, mas, apesar de tudo, tinha álibis consistentes.
Alguns suspeitos famosos chegaram a ser investigados, como Orson Welles, o ator, que fez um teste com Betty pouco antes de sua morte. Pelo mesmo motivo, terem feito testes com a aspirante a atriz, entraram na lista de suspeitos os cantores Woody Guthrie, Bugsy Siegal e o artista plástico Jack Anderson Wilson.
Todos eles foram retirados da lista de suspeitos tão logo entraram por terem álibis e tal.
A mídia sensacionalista especulou sobre a conexão do caso com outros famosos, como os crimes do Assassino do Torso. Mas, apesar da similaridade entre as vítimas, já havia uma década que o Assassino do Torso estava preso.
Uma associação mais possível seria com o Assassino do Batom, William Hereins. Isso porque uma carta que a polícia recebeu supostamente do assassino tinha compatibilidade de estilo de grafia aos das cartas de Hereins. Era assinada, ainda, como Dahlia Avenger.
A conexão foi descartada pela Polícia por causa da área de ação e perfil das vítimas serem diferentes.
Outros crimes semelhantes aconteceram após a repercussão do caso Dália Negra, o que abre a possibilidade de se tratar de um serial killer nunca identificado.
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E vamos voltar à imprensa, que foi o que tornou esse caso infame, tratado como tabloide e especulação, mesmo durante as investigações.
Lembra que eu falei que Dália Negra foi o nome dado por um jornalista? Foi um repórter do L.A. Herald Express chamado Bevo Means. Sua referência acabou dando ao jornal um protagonismo entre os veículos de imprensa, e dias depois eles receberam na redação um pacote escrito, abre aspas,
aqui estão os pertences da Dália, fecha aspas.
Nele estavam cartão de segurança social, certidão de nascimento, telegrama, cartões de visita, agenda pessoal de Elizabeth, com o nome de Mark Hansen na capa e muitas páginas arrancadas, além de fotos dela com militares. Ao utilizar tudo isso para deixar a história em alta, o L.A. Herald Express acabou recebendo dezenas de denúncias e pistas e, mesmo assim, ninguém foi levado à justiça.
A polícia começou a ficar com ranço do jornal tentando sempre emplacar suas pistas e tal e cortou esse negócio de dar informações da investigação à mídia. Antes que esfriasse de vez, o caso ainda teve uma reviravolta feita sob medida pela imprensa que, se sentindo deixada de lado, começou a difamar a vítima.
Na nova versão dela para o público, Betty havia sido presa no ano anterior por beber em vias públicas e sua imagem de devassa foi fortalecida com o constante compartilhamento de suas fotos ao lado de homens em festas e eventos sociais.
Foi nesse momento que também pipocaram as notícias sobre ela trocar oportunidades por serviços sexuais. Um dos jornais afirmava que Betty já havia tido mais de 50 homens.
Nada disso faz a menor diferença, mas o público daquela época não se ligava muito… então, antes de sair da primeira página, a vítima, de vinte e dois anos, cortada ao meio de forma brutal, foi esculachada por uma mídia patriarcal que reafirmou que, se ela foi fatiada, drenada e obrigada a comer o próprio cocô, foi por culpa dela mesma, claro.
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Indo pra conclusão, a gente se dá conta de que todo esse burburinho fez com que o crime se tornasse não só um dos mais misteriosos, mas também mais falados de toda a história recente dos Estados Unidos.
Elizabeth Short é pouco lembrada, mas a DÁLIA NEGRA, a personagem que a imprensa fez em cima de uma jovem vítima de feminicídio, inspirou romances, filmes e até jogos.
Elizabeth Short apareceu como uma das personagens da primeira temporada de American Horror Story, em dois mil e onze.
Sua história inspirou o filme Dália Negra, de dois mil e seis, dirigido por Brian de Palma e inspirado no livro de James Elroy de mesmo nome e publicado em oitenta e sete.
O primeiro filme a abordar sua história foi Who is the Black Dahlia?, de setenta e cinco, e de lá pra cá muitas obras publicadas afirmavam ter desvendado o crime, cada uma com sua teoria.
Uma delas dizia que os assassinos foram Phoebe e Cleo, pais de Elizabeth, que mataram a filha por sua devassidão. Outra dava Orson Welles como autor do crime.
Outros livros, documentários e estudos apontaram outros culpados que não foram considerados à época mas que têm fatos relevantes contra sua inocência. Desses, destaco dois.
O jornalista Pio Eatwell escreveu materiais dizendo acreditar que o assassino era Leslie Dillon, que trabalhava como capanga de Mark Hansen, o cara da agenda. Para ele, Betty e Leslie tinham um caso, e como o homem já tinha trabalhado em necrotério, o que explicava as habilidades com o corpo, ele apareceria como uma pessoa de interesse no caso.
Já em dois mil e três, um policial aposentado chamado Steve Hodel encontrou duas fotos de Betty nua nos pertences de seu pai, o cirurgião George Hodel, falecido em noventa e um.
Essas fotos poderiam indicar que eles tiveram um relacionamento e ser cirurgião também explicava o modo como o corpo foi mutilado e drenado com certa organização. Pra completar, Steve Hodel encontrou um recibo de compra de saco de cimento de janeiro de quarenta e sete, que poderia ser o utilizado para carregar o corpo de Betty e deixado no local do crime.
George Hodel foi um dos principais suspeitos investigados pela polícia na época, mas fugiu para as Filipinas pouco depois do crime, abandonando a família. O homem também tinha uma coleção de fotografias de Man Ray, artista expressionista, que exibiam corpos mutilados.
Por fim, Steve Hodel verificou as caligrafias das cartas antigas de seu pai com as recebidas pela imprensa da época e encontrou semelhanças, e por isso acredita que seu pai era o assassino de Short. Mais que isso, que George Hodel era um serial killer responsável por outras mortes ocorridas na época.
Uma delas foi a de sua secretária, da qual ele foi investigado, mas liberado. Ele também foi acusado pela própria filha de estupro.